O referencial nacional para a educação infantil
Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9394/1996) incluiu a Educação Infantil como etapa inicial da Educação Básica. No artigo 29o é apresentado como finalidade dessa etapa de escolarização, o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.
Em 1998, a Coordenação Geral de Educação Infantil, vinculada na ocasião à Secretaria de Educação Fundamental do Ministério da Educação (MEC/SEF), apresentou o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI). O documento, organizado em três volumes, apresenta, no primeiro deles, uma reflexão sobre creches (que atendem às crianças com até três anos de idade segundo orientação da Lei no 9394/1996) e pré-escolas (que atendem a crianças de quatro a seis anos de idade) no Brasil, situando e fundamentando concepções de criança, de educação, de instituição e do profissional, que foram utilizadas para definir os objetivos gerais da educação infantil. O segundo volume, tratando da Formação Pessoal e Social, aborda aspectos do desenvolvimento da identidade e autonomia das crianças através da educação infantil e, o terceiro volume, abordando o Conhecimento de mundo, é organizado em seis eixos de trabalho orientados para a construção das diferentes linguagens pelas crianças e para as relações que estabelecem com os objetos de conhecimento: Movimento, Música, Artes Visuais, Linguagem Oral e Escrita, Natureza e Sociedade e Matemática.
Neste texto, trataremos inicialmente dos aspectos relacionados à Matemática na Educação Infantil.
Partindo do pressuposto que a Matemática é inerente à vida dos indivíduos mesmo antes do ingresso na instituição escolar, o documento afirma que:
Fazer matemática é expor idéias próprias, escutar as dos outros, formular e comunicar procedimentos de resolução de problemas, confrontar, argumentar e procurar validar seu ponto de vista, antecipar resultados de experiências não realizadas, aceitar erros, buscar dados que faltam para resolver problemas, entre outras coisas. (p. 207)
O documento destaca que essas ações envolvidas no fazer Matemática é que garantem à criança o protagonismo na construção de seu conhecimento. O indivíduo torna-se sujeito ativo na construção do saber à medida que, através da solução de situações a ele propostas, ele pode elaborar e expor idéias e possibilidades de solução e negocia com os demais indivíduos do grupo quais caminhos são mais coerentes na busca da resposta desejada. É através da solução de situações-problema que a criança, além de construir conhecimentos, inicia o desenvolvimento de habilidades[1]:
O trabalho com noções matemáticas na educação infantil atende, por um lado, às necessidades das próprias crianças de construírem conhecimentos que incidam nos mais variados domínios do pensamento; por outro, corresponde a uma necessidade social de instrumentalizá-las melhor para viver, participar e compreender um mundo que exige diferentes conhecimentos e habilidades.(p. 207)
Buscando desmistificar idéias e práticas que permeiam a educação infantil, os RCNEI, discutem quatro aspectos: o papel da repetição, memorização e associação; a abordagem de conhecimentos partindo do concreto em direção ao abstrato; as atividades pré-numéricas e; os jogos e a aprendizagem de noções matemáticas.
A concepção de que a aprendizagem de conceitos se dá a partir da repetição, memorização e associação é freqüente não só em Matemática, mas também em outras áreas de conhecimento. É comum observar um encadeamento linear dos conteúdos, dos mais simples aos mais complexos, dos mais fáceis aos mais difíceis, propondo atividades repetitivas de cópia e memorização de símbolos. Esse tipo de encadeamento, que desconsidera a gênese do conhecimento, pode constituir um obstáculo epistemológico de natureza didática à construção do saber (Pais, 2001). Além disso, o exercício – repetição de procedimentos já aprendidos – não favorece a construção de novos conhecimentos, tampouco o desenvolvimento de habilidades; no máximo destrezas são adquiridas[2].
A relação entre o concreto e o abstrato decorrente do desenvolvimento conceitual sugere a existência de níveis hierárquicos e sucessivos que são delineados por diferentes operações mentais. Ao formar um conceito em nível concreto de acordo com a teoria de Klausmeier (1977), pressupõe-se que o indivíduo tenha consolidado todas as operações mentais referentes aos níveis menos complexos na formação do conceito (concreto, de identidade e classificatório). No entanto, os RCNEI destacam que frequentemente:
O concreto e o abstrato se caracterizam como duas realidades dissociadas, em que o concreto é identificado com o manipulável e o abstrato com as representações formais, com as definições e sistematizações. Essa concepção, porém, dissocia a ação física da ação intelectual, dissociação que não existe do ponto de vista do sujeito. (p. 209)
Essa concepção de relação entre concreto e abstrato relega ao professor o papel de organizar situações concretas e cabe aos materiais manipulativos a função instrutiva em si mesmo, desconsiderando a reflexão sobre a ação como caminho para a construção de significados e atribuição de sentidos às ações.
Outro aspecto que frequentemente permeia a organização das atividades de ensino de Matemática na educação infantil está relacionado à intencionalidade de desenvolvimento de estruturas lógico-matemáticas tais como a seriação, comparação e conservação de quantidades. Nesse sentido, os professores usam frequentemente as operações lógicas e provas piagetianas como objetos de ensino, acreditando serem essas estruturas requisitos necessários à construção de noções numéricas (Brasil, 1998). No entanto, o RCNEI afirma que:
A classificação e a seriação têm papel fundamental na construção de conhecimento em qualquer área, não só em Matemática. Quando o sujeito constrói conhecimento sobre conteúdos matemáticos, como sobre tantos outros, as operações de classificação e seriação necessariamente são exercidas e se desenvolvem, sem que haja um esforço didático especial para isso. (p. 210)
O jogo, caracterizado pela iniciativa da criança, sua intenção e curiosidade em brincar com assuntos que lhe interessam e a utilização de regras que permitem identificar sua modalidade, desempenha na educação infantil papel crucial por auxiliar o desenvolvimento infantil, a construção ou potencialização de conhecimentos. No entanto, é importante ressaltar que o jogo por si só não garante a construção de noções matemáticas na educação infantil. O RCNEI destaca que, na educação infantil,
O jogo pode tornar-se uma estratégia didática quando as situações são planejadas e orientadas pelo adulto visando a uma finalidade de aprendizagem, isto é, proporcionar à criança algum tipo de conhecimento, alguma relação ou atitude. Para que isso ocorra, é necessário haver uma intencionalidade educativa, o que implica planejamento e previsão de etapas pelo professor, para alcançar objetivos predeterminados e extrair do jogo atividades que lhe são decorrentes. (p. 211)
Em geral, a construção de conhecimentos pela criança se dá à medida que elabora reflexões e comunica idéias e representações elaboradas a partir de sua vivência, ou seja, mediante a solução de situações-problema. Busca-se, a partir dos conhecimentos prévios das crianças, mesmo que distintos, proporcionar à criança o desenvolvimento de sua capacidade de generalizar, analisar, sintetizar, inferir, formular hipótese, deduzir, refletir e argumentar:
Na aprendizagem da Matemática o problema adquire um sentido muito preciso. Não se trata de situações que permitam “aplicar” o que já se sabe, mas sim daquelas que possibilitam produzir novos conhecimentos a partir dos conhecimentos que já se tem e em interação com novos desafios. Essas situações-problema devem ser criteriosamente planejadas, a fim de que estejam contextualizadas, remetendo a conhecimentos prévios das crianças, possibilitando a ampliação de repertórios de estratégias no que se refere à resolução de operações, notação numérica, normas de representação e comunicação etc, e mostrando-se como uma necessidade que justifique a busca de novas informações. (p. 212)
Cabe ao professor, nesse sentido, a organização prévia das situações e a interação com as crianças de modo a propiciar tais desenvolvimentos:
Reconhecer a potencialidade e a adequação de uma dada situação para a aprendizagem, tecer comentários, formular perguntas, suscitar desafios, incentivar a verbalização pela criança etc., são atitudes indispensáveis do adulto. Representam vias a partir das quais as crianças elaboram o conhecimento em geral e o conhecimento matemático em particular. (p. 213)
Para as crianças de zero a três anos, o RCNEI apresenta como objetivos para o ensino de Matemática o estabelecimento de aproximações a algumas noções matemáticas presentes no seu cotidiano, como contagem, relações espaciais. Para tanto, indica como conteúdos a serem abordados nessa faixa etária:
· Utilização da contagem oral, de noções de quantidade, de tempo e de espaço em jogos, brincadeiras e músicas junto com o professor e nos diversos contextos nos quais as crianças reconheçam essa utilização como necessária.
· Manipulação e exploração de objetos e brinquedos, em situações organizadas de forma a existirem quantidades individuais suficientes para que cada criança possa descobrir as características e propriedades principais e suas possibilidades associativas: empilhar, rolar, transvasar, encaixar etc. (p. 217)
As orientações didáticas apresentadas pelo documento destacam as festas, histórias e jogos como atividades naturais que favorecem que tais noções sejam desenvolvidas. Destacam ainda, para o desenvolvimento de noções espaciais, que:
As modificações no espaço, a construção de diferentes circuitos de obstáculos com cadeiras, mesas, pneus e panos por onde as crianças possam engatinhar ou andar — subindo, descendo, passando por dentro, por cima, por baixo — permitem a construção gradativa de conceitos, dentro de um contexto significativo, ampliando experiências. As brincadeiras de construir torres, pistas para carrinhos e cidades, com blocos de madeira ou encaixe, possibilitam representar o espaço numa outra dimensão. (p. 218)
Para o desenvolvimento de noções numéricas pelas crianças de zero a três anos, por sua vez, as orientações didáticas apresentadas sugerem que:
O faz-de-conta das crianças pode ser enriquecido, organizando-se espaços próprios com objetos e brinquedos que contenham números, como telefone, máquina de calcular, relógio etc. As situações de festas de aniversário podem constituir-se em momento rico de aproximação com a função dos números. O professor pode organizar junto com as crianças um quadro de aniversariantes, contendo a data do aniversário e a idade de cada criança. Pode também acompanhar a passagem do tempo, utilizando o calendário. As crianças por volta dos dois anos já podem, com ajuda do professor, contar quantos dias faltam para seu aniversário. Pode-se organizar um painel com pesos e medidas das crianças para que elas observem suas diferenças. As crianças podem comparar o tamanho de seus pés e depois olhar os números em seus sapatos. O folclore brasileiro é fonte riquíssima de cantigas e rimas infantis envolvendo contagem e números, que podem ser utilizadas como forma de aproximação com a seqüência numérica oral. (p. 218)
Para as crianças de quatro a seis anos, expandem-se os objetivos, de modo a construir conhecimentos (noções matemáticas) e desenvolver habilidades e atitudes:
· reconhecer e valorizar os números, as operações numéricas, as contagens orais e as noções espaciais como ferramentas necessárias no seu cotidiano;
· comunicar idéias matemáticas, hipóteses, processos utilizados e resultados encontrados em situações-problema relativas a quantidades, espaço físico e medida, utilizando a linguagem oral e a linguagem matemática;
· ter confiança em suas próprias estratégias e na sua capacidade para lidar com situações matemáticas novas, utilizando seus conhecimentos prévios. (p. 215)
Para alcançar tais objetivos, são sugeridos os seguintes conteúdos relacionados aos números e sistemas de numeração:
· Utilização da contagem oral nas brincadeiras e em situações nas quais as crianças reconheçam sua necessidade.
· Utilização de noções simples de cálculo mental como ferramenta para resolver problemas.
· Comunicação de quantidades, utilizando a linguagem oral, a notação numérica e/ou registros não convencionais.
· Identificação da posição de um objeto ou número numa série, explicitando a noção de sucessor e antecessor.
· Identificação de números nos diferentes contextos em que se encontram.
· Comparação de escritas numéricas, identificando algumas regularidades. (p. 220)
[1] Habilidades, segundo Krutetskii (1976) são características psicológicas individuais que favorecem o domínio rápido e fácil de uma determinada atividade.
[2] [...] enquanto as destrezas, assim como conhecimentos e hábitos são adquiridos, as habilidades são desenvolvidas dentro de um processo de domínio das destrezas, conhecimentos e hábitos e é através do desenvolvimento das habilidades que o indivíduo tem a possibilidade de adquiri-los. (Alves, 1999, p. 31)

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